Já se passou quase um ano desde que, num serão no Espiga, ouvi a Lokas Cruz falar das suas viagens. Não eram umas viagens quaisquer, foram viagens em que ela procurou levar algum carinho a quem naquela altura estava mais frágil e perdido do Mundo. A Lokas acabava de se licenciar em Medicina e já tinha estado em Missão em África e na Grécia... seguiria dali a umas semanas para o Bangladesh. Da partilha de fotos, vídeos, experiências, lembro-me que o que mais me tocou foi a fé que a ela mantinha, em Deus e nos Homens, apesar de tantas coisas más que ela já tinha visto acontecer. E assim mesmo (e apesar de tudo) o discurso da Lokas esbanjava Amor. Foi incrível!
Passaram-se uns dias, eu estava quase a fazer anos, como sempre acontece ia rodear-me da minha “tribo”, comer, beber, rir, na habitual festa cigana que dura dias seguidos de convívio e coisas boas... e foi então que pensei: porque não pegar nesta alegria e mimo que todos me dão e fazê-lo chegar onde seja mais preciso? Enviei uma mensagem à Lokas através das redes sociais. Disse-lhe: “Quero pedir às minhas pessoas para não comprarem presentes, para não me encherem de coisas que afinal não preciso. Quero fazer uma campanha para recolher fundos para levares o que seja importante para o Bangladesh”. Mas o Bangladesh era um destino novo, e havia burocracia e o desconhecimento sobre como correriam as coisas na alfandega. “Fala com a Refugees Welcome Porto”, disse-me ela, “Estão a trabalhar com refugiados e pode ser que te consigas associar a alguma das campanhas deles. Tenho a certeza que vais poder ajudar”.
Foi desta maneira improvável que cheguei até a Susana. Mais uma vez, por mensagem, contei-lhe do que queria fazer. E em vez de simplesmente aceitar o dinheiro que eu pudesse angariar, a Susana disse-me: “Vem conhecer-nos, quero mostrar-te o que fazemos”.
Quase um ano depois foram já vários os projetos em que me envolvi e não voltei a deixar a “Refugees Welcome Porto”: trabalhamos na campanha “Agasalha” com a banca de chá e café em Bira, na Bosnia; começamos a construir uma biblioteca com donativos de livros em Inglês; iniciamos o desenvolvimento de uma plataforma digital que agregará informação de suporte a migrantes em todos os países... eu no back-office, porque sempre achei que não teria estofo para o terreno.
Em Maio deste ano, já a equipa estava num projeto de apoio a um campo de transição na Sérvia, a Susana falou-me pela primeira vez da hipótese de ir fazer um tempo lá. Tive vontade. Muita até. Mas no final o medo foi mais forte que a vontade. Só que o bichinho do desafio e de poder estar em discurso direto onde faria mais falta ficou ali, a roer-me e a crescer.
Agosto chegou, as coisas na Sérvia continuavam o seu rumo, entre dificuldades e falta de apoio, mas sem que deixassem de acontecer: porque havia sempre um grupo de 30 a 40 pessoas a contar connosco. E não podíamos ser mais uns a deixá-los à sua sorte.
Um dia, em conversa com a Susana, voltamos a falar da hipótese de lá ir. Uma parte substancial do serviço que era feito no terreno dependia de uma carrinha, que precisava de um condutor. E havia uma semana em que não estaria lá ninguém com carta de condução: “Se pudesses vir nessa semana... “
Um dia, em conversa com a Susana, voltamos a falar da hipótese de lá ir. Uma parte substancial do serviço que era feito no terreno dependia de uma carrinha, que precisava de um condutor. E havia uma semana em que não estaria lá ninguém com carta de condução: “Se pudesses vir nessa semana... “
Neste ponto convém esclarecer que estive anoooooos sem conduzir, e atualmente sou condutora de fim-de-semana, um tanto ou quanto nabiça. Mas o destino estava a dizer-me alguma coisa outra vez. E com alguma insistência.
Foi assim que, em Setembro deste ano, voei para Budapeste, depois de uma viagem de mini-bus, outra de táxi, cheguei a “nossa” casa em Subotica. Levava uma mochila às costas e uma mala com mais de 20 pares de sapatilhas que as minhas pessoas, incrivelmente, me ajudaram a angariar.
E agora tenho de vos explicar o porquê das sapatilhas: a minha cabeça dizia-me que a importância do calçado era tanto maior quanto menor é a probabilidade das pessoas entregarem calçado como donativo: se calhar todos nós nos lembramos da umas quantas vezes em que despachamos sacos de roupa para instituições e não tantas o fizemos com calçado. Mas acreditem, é muito mais que isso. O calçado é tão desejado porque estas pessoas já fizeram centenas de km a caminhar, na maior parte dos casos. Quando chegam, o que traziam nos pés está gasto, sujo e roto. Depois estas pessoas não querem (nem podem) ficar na Sérvia - que em 10 anos concedeu asilo a pouco mais de 50 pessoas. Isto significa que além dos kms que já trazem acumulados nos pés, todos os que aqui estão, querem fazer tantos outros (ou mais) até ao seu destino final. É aqui que começa o “Jogo” que é como eles chamam a tentativa de atravessar a fronteira. Alguns conseguem. Outros, a grande parte, não. E tentam uma, duas, cinco ou mais vezes. Quase sempre são apanhados pela polícia Húngara que o único tratamento que lhes dá é o direito a uma valente sova. Brutalizam-nos, tiram-lhes os sapatos de deixam-nos do lado da Sérvia outra vez. Conseguem imaginar? O que é a angústia e a derrota de voltar ao ponto de partida, de ter de regressar ao campo, que às vezes fica a muitas horas de distância, descalços? Tirar-lhes os sapatos não é só malvadez. É mais que isso. É simbólico. É passar uma mensagem: de que estão bloqueados, imóveis, condenados.
Esta foi a primeira lição que aprendi na Sérvia: a tortura ainda acontece nos dias de hoje e pode ter muitas formas. Algumas delas, bem subliminares.
O dia a dia da equipa em Subótica é passado entre tarefas: um dos principais serviços que prestamos são os duches quentes. Todos os dias a carrinha é carregada com baterias, esquentador, as tendas para os chuveiros, toalhas lavadas, alguma roupa (meias e roupa interior também), champoo, sabonetes, lâminas de barbear, espelho. O depósito de água é enchido pelo caminho, numa bomba pública. Levamos também coisas para nos entretermos e promover o convívio com e entre os migrantes: jogamos voleibol, badminton e cartas. E fazemos o chai na fogueira.
O momento do chai foi outro dos mais especiais: há sempre alguém nos pede a coluna para poder pôr um telemóvel a tocar música em farsi, apanhamos lenha ali à volta, acende-se a fogueira. Um grande alguidar de metal é entregue a um deles e começa então a magia: água, folhas de chá, leite, açúcar. Começa a sentir-se o cheiro a casa. Quase sempre acabávamos à volta da fogueira, sentados sobre os carris da linha de comboio, com um copo de plástico nas mãos. Nós a aprender a gostar de chai, eles a apaziguar a saudade do sitio de onde nunca deveria ter saído. Todos a darmos passos naquele milagre que é comunicar sem ser preciso usar palavras.
Além dos chuveiros a equipa de voluntários que está Subótica faz também serviço de lavandaria: todos os dias recolhemos a roupa suja que cada um dos migrantes nos entrega num saquinho onde colocamos o nome, levamos para casa e identificamos, saco a saco, as peças que lá estão (se aquelas roupas falassem.... o cheiro, era inacreditável.. o estado de algumas peças...) segue-se o processo de lavagem: sempre a 60 graus para eliminar qualquer tipo de fonte de contagio. Num campo improvisado não há água corrente, nem eletricidade, nem nada. Só miséria. E tempo que custa a passar.
O processo de identificação dos sacos da roupa é também uma forma de os conhecermos melhor. Os seus nomes e as suas histórias: Faisal, Farooq, “Small Faisal”, Halal, Zain, Hamad, Farid.
Sabiam que há na Bulgária quem faça da “caça” a migrantes um desporto? Gente rica e sem escrúpulos, procuram-nos nos sítios onde sabem que eles estão, vão armados até aos dentes, correm atrás deles, agarram-nos, espancam-nos, acorrentam-nos por umas horas e depois “soltam-nos”... para terem com o que se divertir outra vez uns dias mais tarde. Disto ninguém fala. Destas histórias ninguém quer ter registos. Conseguem imaginar o que isto faz a um miúdo de 19 anos que está há meses sozinho? As dores do corpo são muitas, mas as feridas na alma, essas, já não há quem as possa curar.
Sabiam que um dos miúdos que tentou passar a fronteira agarrado debaixo de um comboio caiu e perdeu todos os dedos das mãos? Sim, porque o comboio abranda propositadamente para ele saltar lá para baixo, a policia é paga para não ver, o chefe da estação para colaborar.. um negocio onde todos ganham. Menos quem devia.
Sabiam que muitos deles não sabem uma única palavra de Inglês, não percebem o que lhes dizem, não se conseguem explicar. São alvos fáceis para quem os quer enganar ou aproveitar-se deles.
Sabiam que há dezenas de sítios de trabalho escravo para onde, sem saberem, estes miúdos são encaminhados? Grandes plantações de fruta e cereais no Sul de Espanha e em Itália, onde os barcos descarregam mão de obra “grátis” todos os dias. Vendem-lhes um sonho de um salário: fazem-nos trabalhar horas sem fim por dia, no final do mês descontam-lhes parte do dinheiro da viagem, o alojamento, a alimentação... ficam sempre a dever. Uma divida que está construída para durar para sempre.
Sabiam que o trafico de órgãos é um negocio rentável na “nossa” Europa à custa também das vidas dos migrantes? Porque a maior parte deles, ninguém os espera em lado nenhum. Por isso também ninguém dá pela sua falta quando não chegam...
A realidade passou-me por cima de uma forma que nunca pensei ser possível: por mais que nos preparemos para uma situação deste género, nada é como quando lá estamos.
Na semana em que estive em Subótica chegaram 3 rapazes que vinham da Eritreia. Eu dei por mim a pensar: como raio estes jovens conseguiram chegar até aqui??? Fui perguntar ao Google Maps.. e nem ele me conseguia dizer qual o caminho da Eritreia até à Sérvia... Insisti na pesquisa e descobri pelo menos a distância: 3663 kms. Só com a roupa que tinham no corpo. Não perguntei há quanto tempo estavam em viagem, onde dormiram, quantas vezes não comeram... faltou-me coragem.
Aprendi muito sobre fé - pela forma como a seguir aos banhos cada um deles se refugiava e procurava um canto onde rezar; sobre resiliência - com uma família que tinha uma vida boa no Irão, o pai era alfaiate, mas por conversar sobre política com os seus clientes foi perseguido. Tentaram matá-lo à facada. Teve de se vir embora com família: mulher e um miúdo de 4 anos que vive no meio de nada. Que já assistiu a coisas que nenhum menino deve sequer imaginar. Que viu a policia a espancar um grupo de pessoas que tentou atravessar a fronteira com eles; e sobre esperança - porque no meio de tudo, ainda há rapazes que sonham ser jogadores de futebol, ou chegar até Paris e abrir um restaurante... eu gostava que todos eles ainda tivessem sonhos. Enquanto sonham é sinal de que não desistem.
Aprendi que as palavras chave daquela semana eram de uma simplicidade tremenda: shower, gilete, finish, hot, thank you, good shoes, tomorrow... como se o amanhã pudesse resolver tudo o que não foi resolvido ontem, ou no dia anterior, ou antes: quando os ditos civilizados lhes invadiram os países em nome de uma salvação podre e só lhes deixaram ruínas. Tal qual como descreveu um dos miúdos: “A minha rua no Afeganistão ficou só poeira. Todos os dias poeira”.
Aprendi que, coincidência ou não, a sonoridade do meu nome, em farsi, significa “fronteira”...
E, enquanto nós vivemos as nossas vidas da forma que sabemos melhor, isto continua a acontecer. O monstro da clandestinidade continua a sugar vidas a uns e a encher os bolsos a outros. As organizações e os governos sacodem as responsabilidades. Fechamos fronteiras à base da brutalidade. Pagamos a países limítrofes para “ficarem” com eles, como acontece na Turquia. Somos manipulados pela comunicação social com “terrorismo e medo”, ensinam-nos o ódio em vez de nos pedirem para pensar como é que, em conjunto, podemos começar a dar pequenos passos para resolver este problema. Que é gigante. E que não vai desaparecer por si só. Mesmo que queiramos fingir que não o vemos.
Deixo-vos, para terminar, alguns números que todos devíamos conhecer, para sobre eles refletir:
- Atualmente cerca de 55% dos refugiados vêm da Síria, do Afeganistão e do Sudão do Sul
- Só na Síria, em 2017, 2/3 da população deslocou-se para fugir à guerra civil, à perseguição e ao terror. Os países que mais acolhem migrantes e refugiados são: Turquia, Paquistão, Líbano, Irão, Uganda e Etiópia;
- a Turquia acolhe cerca de 2,9 milhões
- o Paquistão 1,4 milhões
- o Líbano 1 milhão
- o Irão 979 400
- o Uganda 940 800
- a Etiópia 791 600
- Desde a crise migratória do verão de 2015 até ao final de fevereiro de 2018, foram recolocadas 33.721 pessoas refugiadas para Estados membros da União Europeia;
- Em 2018, morreram (e desapareceram) 2262 pessoas no mar Mediterrâneo, enquanto tentavam chegar à Europa, de acordo com os números do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR);
- Em 2017 tinham sido 3139 (e que dizer dos números não oficiais??....);
- O deserto do Sahara, na fronteira com a Argélia é tão ou mais letal do que o Mediterrâneo para os migrantes: poderão ter morrido no deserto, perdidas, com sede, exaustas e sob um calor de mais de 40 graus até 30.000 pessoas desde 2014;
- Apenas 16% dos refugiados a nível mundial foram acolhidos em países desenvolvidos;
- Em todo o mundo, o número de pessoas que fogem das perseguições, dos conflitos e da violência atingiu, pela primeira vez, os 70 milhões. Em termos comparativo este valor equivale, por exemplo, a todos os homens, mulheres e crianças do Reino Unido e da Irlanda serem forçados a abandonar as suas casas. As crianças representam cerca de metade da população mundial de refugiados.
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